"O seu irmão ficou na sala quatro", minha mãe disse hoje cedo. É o tipo de experiência que ninguém nunca quer ter, conhecer várias salas de velório de um cemitério. Sábado, quando ela me ligou no trabalho, eu sabia que era notícia ruim. Atendi o telefone com raiva e medo mas, né, não adiantou.
Meu vozinho fofo.
As coisas começaram a girar e o ar sumiu, fui sentar pra não dar vexame. É engraçado esse primeiro choque, nunca tinha sentido. O que me faz pensar no quanto de coisa que eu reprimi quando foi com o meu pai. Não sou screwed up à toa, né. Me mandaram pra casa, eu queria continuar no trabalho. Me abraçaram tão incrivelmente, o que só me fez amar mais aquele lugar. Voltei pra casa, sem saber direito o que tinha acontecido. Encontrei meu irmão e minha vó, ela com uma sacola com as roupas dele. Acho que nunca tive tanto cuidado com uma sacola na vida, como se ele estivesse ali dentro.
A partir daí, não me reconheci. Ajudar a escolher a roupa com a qual ele vai ser enterrado, ok. Levar RG no cemitério do Araçá, pra liberarem o corpo, ok. Ficar três horas no necrotério do hospital esperando o rabecão pegá-lo, ok. Reconhecer o corpo, ok. Possivelmente ter que vesti-lo caso o necrotério não o faça, ok.
Ok meu cu. Segurando bem a onda, mas cagando de medo, por dentro, de entrar num episódio de Six Feet Under. Mas nunca que eu deixaria a minha mãe ou a minha vó passar por isso. Prefiro ter um surto psicótico no necrotério a submetê-las a isso.
Meia-noite cheguei em casa, gelada. Me forcei a dormir, até sonhar com algo que eu não lembro, mas que foi o suficiente pra eu acordar com medo. Fazia muito tempo que não acordava assim. Não era angústia, era medo mesmo. De precisar cobrir a cabeça e tentar controlar o sonho. Me forcei a dormir porque eu sabia que o que seguiria seria uma experiência muito bizarra e que, se eu não dormisse, seria dez vezes mais bizarra. Levantei três horas depois de adormecer, parecendo que não tinha pregado o olho a noite toda.
E era aquele cemitério, né. Pai, irmão, vô paterno, todo mundo lá. Isso já basta pra deixar tudo bem esquisito*. Eu já tava preparada por tê-lo visto no necrotério na noite anterior. Minha mãe e minha vó ficaram péssimas, claro. Eu tentei não olhar muito. Minha vó ficou sozinha um tempo com ele. Me afastei, porque eu nunca quero saber o que é que se fala numa situação dessas pra quem você amou por 58 anos.
O povo foi chegando, muitos amigos do meu irmão. Aliás, muitos amigos do meu irmão ao longo do período todo, ligando muito. Ele contou pra todo mundo. Eu não consigo fazer isso, falei pra três pessoas só. Todos os amigos próximos dele foram. E eu comecei a me apaixonar por todo mundo. Fiquei prestando atenção no jeito que eles chegavam perto do caixão, do jeito que olhavam pro meu vô e tal. Algumas reações me emocionaram muito, mas até agora não chorei. Muitos familiares, gente que nunca vi antes. Me apaixonei por todos eles. Essa porra toda aí de amor é uma merda realmente poderosa, vai se fuder. Muitas pessoas que eu não via há anos, todas elas dizendo o quanto eu pareço mais madura**.
Dividi as tarefas com o meu irmão. Enquanto ele olhava a minha vó, eu olhava a minha mãe. Trocando o dia todo, dependendo da necessidade. Engraçado isso, participar do processo todo. Meu primeiro velório e meu primeiro enterro, por incrível que pareça***.
O fato é que. Minha mãe já perdeu marido, já perdeu filho, mas nunca perdeu pai. E eu já. Então tô tentando fazer o que eu posso, mesmo que a minha preocupação com ela dure só um segundo, até eu lembrar que ela é tipo uma força da natureza. Não tem nada mais desesperador que choro de mãe e pai.
E a minha vó, né. Que dificilmente vai se recuperar dessa, de tanta culpa que eu acho que ela tá sentindo. Porque ele realmente era um dos últimos caras bacanas desse mundo. 58 anos casado com a minha vó. Quem é capaz de um amor assim, só pode ser um dos meus mesmo. Vamos só ver como isso vai ficar.
Todo ano novo na praia era a mesma coisa. Onze e quinze, a gente ia pra praia a pé ver a queima de fogos. Só que ele pegava outro caminho, sozinho, porque passava mal (começo dos problemas do coração) e tinha vergonha de passar mal na nossa frente. E eu ficava aflita tentando encontrá-lo naquela muvuca, antes da meia-noite, pra passarmos todos juntos. Todas as vezes, consegui encontrá-lo antes. E quando eu o encontrava, era o melhor momento do ano velho e o melhor momento do ano que tava entrando.
Depois do derrame, ele mudou totalmente. Ficou mais brincalhão, menos tenso, aproveitando mais a vida mesmo. Praticamente uma criança levada. Reaprendeu a falar, a brincar e rir. Desde então a gente ficou mais próximo, rindo juntos de tudo. Ele sempre conversava comigo sobre assuntos que ele tinha certeza que eu amava. Falando de filmes que tinha gravado na televisão, ou sobre o celular novo que comprou e tinha rádio****, ou perguntando sempre sobre a única namorada minha que ele conheceu, ou sobre o meu trabalho (esse era o assunto atual favorito dele). Eu contava as coisas e só de ver a reação dele, já me valia as grosserias que eu enfrento todo dia.
Meu vô. Que tomou um chute meu na canela quando levou só o meu irmão pro campinho jogar futebol. Que me pediu pra fazer a sua barba, naqueles três meses que o acompanhei de perto no hospital ano passado. Que se recuperou de um coração literalmente partido. Que, desde que eu era pequena, me oferecia as bebidas que tava tomando. Pra eu 'molhar o bico'. Que sempre foi a primeira pessoa a recorrermos desde situações tipo videocassete quebrado até mãe que se quebrou na escada*****. Que não precisava, mas que ficou do lado do meu pai até quando não era esperado. Que, mesmo doente, não parava em casa e conhecia todo mundo no bairro em que trabalhava.
Chegamos do enterro às 16 horas e fizemos fondue de queijo, tomando vinho. Porque a vida tem que valer a pena, como ele ensinou a gente.
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Essa porra toda de morte. Eu nunca entendi e nunca vou entender, pra mim é uma coisa bem absurda. Simplesmente parar de existir. Nunca mais encontrar, nunca mais conversar. Nunca.
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Mas você sabe, né. From here to Birmingham, I got a few friends.
* estranho não, muito pelo contrário. Bem familiar.
** em velório todo mundo parece mais maduro, eu acho. Sei lá de onde vem isso.
*** eu sempre me achei meio que uma expert em morte, mas nunca lidei com isso de frente como dessa vez. Sem ninguém me proteger, mas protegendo. Tava na hora, né. Além de perdê-lo, eu sinto que perdi alguma outra coisa nisso tudo.
**** no hospital, ele ficava ouvindo o rádio do celular na maior animação.
***** e ela se quebrou bastante já. Uns três tombos na escada, mais algumas queimaduras. Ele ficou meio como o homem da família mesmo, depois que o meu pai morreu.
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